Minha Vida de Escritora (Versão Remix)

Em poucos meses chegarei aos 45 anos, com a sensação estranha de ser veterana e iniciante ao mesmo tempo. Embora já tenha rodado por aí, sou quase desconhecida como escritora. Quem olha as datas de publicação dos meus livros, pode julgar que escrevo pouco. “Calcinha no varal” saiu em 2005, “O afeto” em 2012 e meu terceiro romance, “Luciana e as mulheres”, sairá neste ano, 2019.

Com esses intervalos (cabalísticos?) de 7 anos, será difícil convencer que escrevo muito, quase todo dia. Pastas de textos avulsos se acumulam em minhas estantes e gavetas sem chegar à forma de livros. Estive boiando nas águas literárias desde os vinte e poucos anos, e perdi várias ondas que quebraram à minha volta: a primeira geração da internet (sim, eu tinha um zine solitário com uns 300 leitores), as jovens escritoras de confissões sexuais (também me confessei, mas rezei três ave-marias e fui perdoada). Não estou nas listas de escritoras mulheres, feministas e lésbicas. Talvez porque eu fosse assim no fim dos anos 90, quando não era moda.

Há algumas semanas, mexendo numa caixa de cartas, encontrei um email enviado em 2000 por um jovem escritor que hoje é premiado e admirado, uma figura notável e já internacional. No email ele me agradecia pelos comentários ao seu primeiro livro de contos, dizendo que eu era “provavelmente a primeira pessoa desconhecida” que gostava de um livro dele. Na época estávamos os dois começando. Ele determinado foi em frente, eu fiquei dando voltas por aí.

Antes que isso pareça uma lista de ressentimentos, aviso que é justamente o contrário. Constato satisfeita que minhas angústias e paixões da juventude não eram só minhas, e com o tempo floresceram em vários jardins. Aos 20 anos, o que mais me angustiava era a solidão. E ela desapareceu. Vupt, evaporou.

Escrever já teve muitos motivos pra mim. Aos 12 anos o impulso passou a dominar minha vida. Era uma fascinação pelos livros que eu adorava; eu queria fazer igual, descobrir como aquilo funcionava. Dos 20 aos 30 anos foi uma questão de autodescobrimento e expressão individual: descobrir quem eu era e afirmar isso por escrito. Paralelamente, quando comecei a trabalhar, tive minhas ambições de carreira. Precisava marcar meu nome como artista, chamar atenção para o que eu fazia – pra conseguir mais trabalho, ganhar melhor.

Muitos escritores falam de escrever como uma missão sem objetivo, uma atitude zen (embora nem sempre pacífica): escrever por escrever. Na juventude eu achava isso meio pedante. Eu pensava: “Que pretensão! Sempre escrevemos algo por algum motivo”.

Mas, entre as piadas do destino, acabei descobrindo que os “motivos” se esgotam. Os meus se esgotaram. Para autodescobrimento, fiz terapia. Para a carreira, bons colegas e um histórico de trabalhos bem feitos bastaram pra eu seguir em frente. A “expressão individual” se tornou repetitiva, afinal sou uma pessoa só, e as coisas que tenho a expressar não são tantas assim.

Escrever um romance é cansativo, leva tempo e paga pouco. Depois de escrever uns quatro ou cinco (nem todos publicados), não acho tão fácil encontrar a energia pra subir de novo essa montanha. Lembro da frase de um jornalista cínico já falecido (cujo nome infelizmente esqueci): “Não entendo os alpinistas. Subir tudo isso pra quê?”

Na busca de um novo “para quê”, lembro das aulas de português na escola. As várias folhas de caderno que eu preenchia aos 14 anos com exercícios de análise sintática. Sempre gostei de sintaxe e regência verbal. Na gramática, a pergunta “pra quê?” sugere um adjunto adverbial de finalidade. Peço desculpas se essa expressão desperta trauma em alguém. Pra mim a lembrança é boa. O verbo “escrever”, se eu ainda tivesse meu caderno escolar, poderia estimular um exercício de verbo transitivo direto com adjunto adverbial. “Quem escreve, escreve algo para alguém”.

Mas eu disse no início que sou “quase desconhecida como escritora”. Isso significa que o “alguém”, no meu caso, é um número miúdo e singelo de pessoas (embora valha complementar que quase todos os escritores brasileiros vivos são desconhecidos).

Um “alguém” miúdo significa que escrever livros não é uma profissão, no sentido atual de trabalho remunerado. Mas é uma profissão no sentido original da palavra: uma confissão pública de uma crença, um sentimento, uma opinião e/ou um modo de ser.

“A confissão pública de um modo de ser” parece até o chavão de “escrever por escrever”. Mas há uma leve diferença. Escrever por um motivo que quase não existe, um motivo delicado, um pouco mais que nada – é algo, apesar de tudo. Um motivo quase imperceptível é ainda assim um motivo.

Esse texto está escorregando para um papo místico e vou tentar finalizar sem parecer que lanço minha carreira na auto-ajuda (que aliás hoje é “aprimoramento pessoal”, bem mais digno)

Gosto de uma imagem da literatura romântica: escrever como uma mensagem na garrafa. Um bilhetinho que você fecha lá dentro com uma rolha, e atira ao mar. (faço aqui uma pausa para ler na wikipedia as origens da expressão – já que nasci longe do oceano, nunca joguei nem encontrei garrafas seladas)

Gosto dessa imagem porque recebi as mensagens de pessoas lindas que viveram antes de mim. Elas deixaram suas vidas por escrito em livros que fui descobrindo ao acaso. Assim me ajudaram a descobrir que o mundo, a vida e as pessoas são mais admiráveis do que eu poderia perceber sozinha. (Quanto às pessoas, claro, minha admiração é sempre relativa, e sigo cantando com Ataulfo Alves e Itamar Assumpção... quanto mais conheço o homem, mais eu gosto do meu cão) (outro detalhe: não tenho cão).

Na terapia, aprendi que pai e mãe devem ser “continentes” das angústias das crianças. Ser continente é ter capacidade de absorver a frustração daquela pessoazinha em formação. Não devolver o ódio a ela. Conter o ódio, amortecê-lo, e permitir que a criança se desenvolva em paz (na medida do possível).

Agora que meus antigos motivos se acabaram, isso se tornou importante pra mim. Escrever é dizer as coisas que alguém deve dizer, quando quase ninguém está dizendo. No meu caso, escrevo para criar um espaço de sentimento e beleza em torno de mim e das pessoas por perto.

A violência e a agressão têm presença demais nas artes e nas mídias hoje. Faço o possível pra me livrar disso. Pra que replicar tanto ódio? Pra que reproduzir a violência? Quando leio e escrevo, fico mergulhada no mundo que eu escolho, e esse mundo é amoroso sem ser meloso. Ele tem esperança sem ser panfletário nem populista. É um mundinho que vou criando com os detalhes mais legais que encontrei por aí.

Nesse mundinho as pessoas transam sem pensar e se metem em encrencas; bebem, tomam café e fumam maconha... coisas que já não faço porque aprendi a ser feliz e saudável. Em poucos meses chegarei aos 45 anos, com a sensação estranha de ser veterana e iniciante ao mesmo tempo. Com meus livros, aprendi que 7 anos passam rápido. Talvez aos 52 eu tenha algo diferente a dizer.

Comentários

  1. Que texto incrível! Um aconchego para quem também escreve, ou "tenta", como eu rsrs. Parabéns!

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    1. Oi, Érika. Fico feliz que tenha gostado! Quem escreve sempre precisa de um aconchego, pois é mesmo difícil ;)

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  2. É por isso que eu te amo. Tenho hoje a idade que você tinha quando te conheci e, a propósito, na terapia aprendi a não ter medo de dizer que amo. rs

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    1. A terapia ajuda em muitas coisas! Depois que escrevi esse texto, fiquei meio com vergonha (sempre tenho vergonha de soar messiânica). Mas agora reli e achei que está ok :)
      A gente se conheceu em 2007, mais ou menos? Lembro dessa época de blogs sempre com muito carinho.

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