Primeiras páginas de "Luciana e as mulheres"

Como começa um livro?
Depois de muitos esboços, chega o momento em que você precisa escrever uma página "definitiva". Uma página em que você vai definir o estilo e o ritmo da narração.
Na primeira versão do livro, essa página será sua referência. Sempre que você sentir que perde o caminho, você pode reler o início, para relembrar seu rumo.

Esta foi a primeira página "definitiva" que escrevi para "Luciana e as mulheres". 

Depois de muitas revisões, quando o livro foi publicado, o que sobrou desse texto ficou nas páginas 21 e 22. Nem mesmo a frase inicial, que por muito tempo me serviu como referência de estilo, permaneceu intacta.

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"A cidade é grande e existem momentos em que você quer apenas conhecer alguém novo, cuja idade, origem, história e relações sejam totalmente diferentes dos seus. Começar em branco, como se fosse outro país.

Existem muitos caminhos para conhecer pessoas pela internet, eu prefiro os mais distantes e controlados. Um anúncio simples: "Mulher, 37 anos, com gosto por arte e livros, procura amiga lésbica e solteira para sair à noite e conversar." Preferiria não mencionar arte e livros, para evitar o pedantismo, mas há pessoas que se interessam prioritariamente por negócios e esportes, e aprendi por experiência que é melhor especificar.

Olho anúncios em tempo contado, meia hora por dia, de manhã geralmente, raramente à noite. É como caçar, preciso atenção para farejar um potencial objeto de interesse na imensidão de bobagens. Leitura rápida dos perfis, em navegação aleatória; sem priorizar fotos (pessoas bonitas frequentemente se escondem); protegendo-me da falsa esperança de boas surpresas a partir de um perfil medíocre. Se ao fim de meia hora não encontro algo estimulante, arrisco um contato neutro em três ou quatro perfis de informações insuficientes (o excesso de banalidade nunca é desmentido; a brevidade pode indicar elegância).

Um perfil sem foto, certo dia, mostrava apenas uma frase em inglês: "Are you my mother?" Outras informações sucintas: mulher, 25 anos, terceiro grau incompleto, signo câncer. Poderia ser uma órfã estrangeira perdida no país. Ou, com otimismo, poderia ser uma jovem intelectual e militante, atualizada sobre o lançamento recente nos Estados Unidos do segundo livro de uma conhecida desenhista lésbica de esquerda. Um código, ou laconismo carente. Enviei uma mensagem: "Olá. Se quiser escrever, meu endereço é (...)". Meu email, para esse tipo de atividade, é o nome de um grupo lésbico-feminista de São Paulo na década de 1960, As Graciosas.

Recebi a resposta alguns dias depois. Apenas uma linha: "Oi, tudo bem?"

Naquele dia, seu email competia com a longa apresentação de uma secretária de universidade privada, jovem e redonda, que nunca tinha saído com mulheres mas tinha muita curiosidade, e as cobranças de uma senhora casada a quem eu dissera não me interessar, e insistia num primeiro encontro alegando ser injusto que eu não me interessasse apenas baseada em uma foto e três emails.

Curiosamente, para muita gente na internet dizer "amiga" ou "amizade" é um eufemismo aceitável para sexo casual. Enquanto as palavras "sexo casual", ao contrário, assustam as mulheres, atraindo geralmente casais em busca de uma parceira para encontros a três.

Depois de alguns emails descobri seu nome, Fernanda. Marcamos uma cerveja num fim de tarde perto da Augusta.

Pessoas andando pela calçada em clima de paz. Sinto como artigo raro, há alguns anos. Parei à porta do espaço de cinema patrocinado por um banco e esperei olhando as moças que diminuíam o ritmo, buscando reconhecer o rosto da foto que recebera. Um olhar de reconhecimento breve e seguimos para um bar de rua vazio, ali perto. Sua pele era mais escura do que a foto mostrava. Óculos grossos, rosto cansado. Ela trabalhara o dia todo, enquanto eu estava em casa, fazendo coisas em meu modo vago. Eu já sentira outras vezes compaixão por essas moças que trabalham o dia inteiro e depois juntam sua energia para conhecer alguém, o esforço em fim de expediente para ter um pouco de vida. O contraste ainda me espanta de meu próprio privilégio.

Falamos pouco no início. Ela tinha o rosto sério, olhos baixos e contraídos. Cabelo fosco e desajeitado, não senti impulsos carnais. Fiz algumas perguntas de mapeamento, buscando uma fresta de leveza, mas não foi fácil mesmo considerando minha prática razoável nisso. Desisti da cerveja, de todo modo não posso, mais de uma garrafa me enjoa e engorda, pedi uma dose de aguardente e ela sorriu brevemente. Se a conversa não flui, certo excesso controlado de álcool é prazer suficiente (por isso encontros nunca me frustram). Álcool, suspiro. Minha psicanalista apontava o excesso de razão que me alheia do instante real. Precisaria de muita vigilância para evitar minha vocação ao raciocínio - e depois ao instante, quando é forte, não se escapa.

Mais tarde, talvez tenha sido seu olhar de insegurança para mim, talvez a hesitação de avançar ou não sobre esse aparente vontade de ser capturada, seu rosto já perto do alcance. Ou a linha de seus pelos íntimos na barriga magra de pele desbotada, estendida no chão de seu apartamento pequeno, no fim da noite. Voltei para casa um tanto deslocada.

No segundo encontro, ela perguntou:

- Por que você escreveu que procurava uma amiga?
- Acho estranho todo o resto. Encontrar alguém e decidir logo se serve ou não. As expectativas... a pressão de terminar o que nem começou.
- Por que você precisa decidir logo?
- Pois é. Eu adoraria não precisar. Mas simplesmente não sou assim.

Fernanda parecia agora subitamente segura. Óculos diferentes, cabelo penteado, a franja presa com uma fivela. Caminhamos algumas quadras em direção a uma livraria, mas desistimos de entrar. Havia uma palestra, mas eu estava desconcentrada e perdi a vontade de assistir.

Eu disse:

- Olhe, vamos sentar e conversar sobre algum assunto qualquer. A outra noite foi ótima, mas eu bebi demais e realmente não quero transar hoje. Eu lido mal com esses impulsos e preciso me organizar.
- Está bem, vamos conversar sobre um assunto qualquer.

Sentamos na área externa de uma doceria que servia salgados e vinho. Bebi apenas uma taça, e depois chá. Fiquei feliz de me manter sóbria, e pacificamente seguimos para meu apartamento. Ela parecia doce quando nua. Adormeci sem perceber e durante a noite abri os olhos sonolenta, algumas vezes, esquecida e então lembrando que ela estava ali.

Eu lia, nesse período, duas biografias de escritores que se suicidaram ao fim da segunda guerra mundial. Estava organizando meu pensamento sobre sofrimento e suicídio, num momento de estabilidade depois uma longa depressão finalmente curada. Tentava refletir com distanciamento e resgatar a sensação de profundidade de que sentia falta. A depressão era terrível quando estive mergulhada, mas a estabilidade pode ser indiferente. Não havia, em torno de mim, fatos suficientes para inspirar um suicídio, não havia um horror disperso comparável ao horror da guerra? Havia. Seria grosseiro esquecer isso.

Eu me mantinha estável porque inventaram bons remédios, provavelmente. Alguns anos de psicoterapia, uma série considerável de percepções iluminadoras sobre minha história e comportamento, a aposta idealista no poder transformador da psicanálise, nada disso evitara minha instabilidade emocional frente aos detalhes do cotidiano. No momento da fragilidade, só os remédios me resgatavam. Lendo as vidas dos escritores que morreram sem remédio, eu tentava permanecer sensível e não julgá-los infantis ou incompetentes."

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