O afeto, por Paulo da Luz Moreira

(REVELL – Revista de Estudos Literários da UEMS, Julho de 2013)


    O afeto ou caderno sobre a mesa de Sabina Anzuategui é um relato memorialístico em primeira pessoa particularmente original por duas razões. Em primeiro lugar pelo fato de que Denise, a narradora adulta, recuperando-se de uma crise intensa que quase a leva ao suicídio, concentra-se quase que exclusivamente no período entre onze e treze anos. Estamos, portanto, num território incerto, menos trafegado literariamente que seus dois vizinhos: a infância e a adolescência. Anzuategui trabalha com muita sutileza os afetos e a sexualidade difusa desse período de transição da vida. Em segundo lugar, O afeto ou caderno sobre a mesa chama a atenção pela maneira sutil com que Anzuategui amarra esses pequenos dramas de um período aparentemente banal na vida de uma menina introvertida de classe média com um retrato discretamente impiedoso do Brasil que os vinte anos de ditadura nos haviam legado. 

Mantido sempre como pano de fundo da trama pessoal da protagonista do romance, o Brasil da primeira metade dos anos 80 ainda assim aparece com clareza, com suas crises econômicas exacerbando ainda mais desigualdades glosadas por preconceitos e intolerâncias diversas e as banalidades de uma nova cultura de massas alheia ao passado recente. Mais especificamente ainda, esse pano de fundo de O afeto ou caderno sobre a mesa é uma Curitiba de classe média, tacanha e provinciana, que se divide entre a ânsia impiedosa dos poucos prósperos em enfatizar sua ascensão social e a angústia dos estagnados entre a pobreza que causa condescendência ou horror e a riqueza que provoca inveja ou admiração. Chamo de discretamente impiedoso esse retrato tão claro daquela época e lugar porque a voz narrativa, modulada com precisão por Anzuategui, não dá lugar nem para nostalgias nem para amarguras. Sua clareza objetiva vem, em parte, da desafeição desse romance a qualquer tipo de síntese interpretativa ou dramatização histórica. 

Enfatizo que não é esse o foco principal do romance, nem a motivação da protagonista Denise para narrar a sua história. A entrada da narrativa no terreno das memórias desse período específico é fortemente marcada pela voz materna: Denise encontra um caderno presenteado pela mãe naquele período, e o caderno contém uma dedicatória que é demonstração de afeto e convite de comunicação. Esse pedido, feito durante o período em que os pais de Denise estão se separando e ela vive sozinha com a mãe, é o motor fundamental da narrativa. O caderno que devia ser deixado em cima da mesa e servir de ponte entre as rotinas desgastantes da mãe, ocupada com aulas na universidade, e a filha pré-adolescente acaba ficando praticamente vazio com exceção de “piadas, desenhos ou letras de músicas”. Mas é esse caderno, que figura no título do romance que é simbolicamente preenchido, muitos anos depois, pela narrativa da protagonista. A Denise de Sabina Anzuategui faz em O afeto ou caderno sobre a mesa uma tentativa corajosa de articular um complexo mundo afetivo de angústias e desejos reprimidos que havia permanecido em silêncio, sem expressão. 

Renascem com grande vivacidade nas páginas desse romance aparentemente despretensioso vários fantasmas desses dois períodos tão singulares e quase inexplorados a pré-adolescência e os estertores da ditadura militar que pareciam teram como fantasmas à vida de uma mulher aparentemente muito bem sucedida em sua vida afetiva e profissional e ganham concretude nas figuras que marcaram a pré-adolescência de Denise: sua mãe, suas amigas Paula e Juliana e “a sombra da criança que nunca nasceu, o filho que meu pai não teve com a mulher que não conheci”.

O único defeito de O afeto ou caderno sobre a mesa é que suas 125 páginas acabam rápido demais.



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