O afeto, primeiro capítulo (versão 2008)

Acordei provavelmente às três da manhã, depois de um sonho em que precisava preparar várias jarras de suco e tigelas de sopa para servir a alguém, e tinha medo que minha casa fosse invadida, e depois a vergonha e o pavor de que descobrissem um hábito secreto em relação a algo que não lembro, dirigindo carros antigos em alta velocidade e batendo de propósito contra o muro, e minha mãe descobre o segredo e eu viro um homem que foge, e numa curva perco a direção do carro, uma peça escapa rolando do motor, e quando tento alcançar a peça eu acordo.

Não consegui voltar a dormir, e com alguns pensamentos soltos lembrei de minha última conversa com a psicóloga, quase um ano atrás. Imaginei o que diria se eu contasse esse sonho. Ainda guardava a imagem de seu rosto quando falei que não queria mais voltar. Seus olhos sérios e compreensivos, talvez compreensivos demais, e a sensação incômoda de que tinha pena de mim.

Os outros motivos, me forcei a lembrar. Insatisfeita porque o ritmo semanal não correspondia às minhas crises, a hora marcada não era quando eu precisava de ajuda, sempre contrariada pois os cinquenta minutos terminavam e eu não queria me interromper.

Fui para o computador pensando em trabalhar um pouco. Abri o arquivo de um relatório que devia terminar para a próxima semana. Estava cansada, embora não conseguisse dormir, e não pude me concentrar.

Havia o outro texto. Pensei em ligar para a psicóloga assim que amanhecesse. Será que ele poderia ler? Mas não podia mostrar a ninguém enquanto estivesse nesse estado de angústia. Precisava me acalmar.

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Eu não poderia dizer o nome dele. Eu soube que era frágil quando deixou a camisinha no chão. Não lavou nem ficou desconfiado que eu pudesse usar aquilo como prova de alguma coisa. Nem brincou com o líquido, porque era evidente que não estava alegre. Eu tentava me apegar à minha postura de estudante, e encarar o sexo tecnicamente. Não era exatamente possível, com ele.

Quando olhei ele estava em frente à janela. No fundo do quarto, num canto escuro. Falou alguma coisa que não escutei, depois lembrou que precisava comprar um presente para sua filha de doze anos. Tinha os olhos tristes e eu mesma fiquei triste, como nunca teria imaginado, mesmo em todas as vezes em que pensei na sensação: de estar com ele, num quarto.

Eu nunca disse nada porque não havia modo de falar. Não queria que o sentimento se enfraquecesse em frases frágeis: quanto havia pensado em sua pele, sua proximidade. Não sabia dizer com a gravidade que existia internamente.

Depois que ele saiu, tive vontade de ir ao banheiro. Ao sentar no vaso, senti o cheiro entre minhas pernas. Só então percebi como era evidente e terrível: ele havia ido embora. Não senti culpa, apenas a tristeza da impossibilidade. Isso era ainda mais difícil de aceitar.

Durante algumas semanas senti vergonha de olhar para seu rosto, só nos cumprimentávamos rapidamente na faculdade. Quando eu entrava no departamento, ele saía. Eu também fazia o mesmo. Não conseguia me desligar da imagem de seu corpo estendido em minha cama - lembrava sua temperatura, o desenho de seus músculos e ossos. Meu pensamento, instável, se alternava entre a leveza de seu rosto, antes daquela tarde, e o sorriso que sumia - a melancolia que aparecia quando nos encontrávamos, a expressão diante da janela do meu quarto.

Houve uma manhã em que saí da faculdade antes da aula terminar. Quase não havia alunos no pátio. Ele estava parado na calçada, em frente a uma banca de livros usados, com uma menina de cabelos escuros. Ela segurava sua mão, enquanto ele tentava lhe mostrar alguns livros. Ela parecia impaciente e puxava seu braço, até que ele desistiu e seguiram para a rua, onde seu carro estava estacionado. Enquanto caminhavam, e ela esperava que ele abrisse a porta, a menina não conseguia descansar. Olhava irritada para carros e pessoas que passavam. Ele dizia algumas coisas que ela mal respondia. Esperei que saíssem, e segui para o estacionamento.

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Comecei a dirigir e senti a lembrança repentina do sol forte, que me ofuscava os olhos, na ladeira de paralelepípedos, na feira de artesanato, no centro de minha cidade. Eu deveria ter dez ou onze anos. Meu pai me chamara para passear sozinha com ele. Nós andávamos pela feira em silêncio e ele me perguntou várias vezes o que eu queria comprar. Eu não sabia escolher, a pergunta era incomum. No alto do morro, ao lado da igreja matriz, sentamos numa lanchonete e ele perguntou se eu queria um refrigerante. Lembro com detalhes da garrafa verde e da marca no vidro. Também lembro que não me olhava, diretamente, quando disse que ele e minha mãe iriam se divorciar.

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As imagens começaram a surgir, nos meses seguintes, em golpes de memória - numa banca de jornal, no caixa do supermercado, em qualquer tempo morto. Eram cenas comuns, imagens que eu nunca quis esquecer, que relembraria talvez se alguém me perguntasse. Cenas que me pareciam familiares e ao mesmo tempo estranhas: porque eu poderia lembrar, mas não lembrava. Não havia esquecido, mas isso era menos importante que essa outra condição: a condição de não lembrar.

Tinha uma sensação vaga de que essas lembranças, por sua pouca importância, eram talvez mais importantes que a memória recorrente de minha vida, a história a que eu havia me acostumado. Pensei que a psicóloga poderia me ajudar. Talvez pudesse, e desisti. Quando a procurei, tinha vergonha do que iria dizer. Quando parei, senti culpa pelo que não disse.

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Algum tempo depois de interromper o tratamento, comecei a anotar as cenas. Pensei que os sentimentos ficariam no papel e minha memória se esvaziaria. Mas a falta de lógica entre as anotações me incomodava. Faltavam detalhes, eu não lembrava por que certas coisas haviam acontecido. Não queria um motivo profundo e existencial: sentia falta do motivo real, da causa imediata de cada cena.

Com muita dificuldade escrevi o que se segue. Não sei se o texto é claro, nem se está bem escrito. Apenas tentei estender minha memória até onde pude, para ser clara, ser exata, mostrar o que aconteceu no limite de minha possibilidade. Mas tenho medo que tudo isso, por mais custoso que me tinha sido, ainda não explique o essencial.

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Durante muitos anos tive um pensamento recorrente que me envergonhava muito. Quando era noite, e eu sentia vontade de me masturbar, a cena que me vinha à mente era a sedução de um homem adulto, que convencia uma menina a aceitar a penetração. Nesta cena que construí centenas de vezes, em vários ambientes e posições, não havia beijos, nem toques, nem outros contatos físicos além dos necessários à penetração. Não era uma cena de estupro, mas a lenta estratégia em que a criança só percebia a violência a que era submetida quando já não tinha possibilidade de escapar.

Eu tinha uma vergonha e uma dúvida. A primeira era pensar que eu mesma, que queria me considerar uma pessoa boa, tivesse algo mau dentro de mim, uma vontade que, mesmo não admitida, existia e era cruel. A segunda era temer que esta violência tivesse sido infligida a mim quando pequena, numa situação que eu não recordasse, mas tivesse alterado ou condenado minha saúde emocional.

Carreguei esta vergonha por muitos anos. Havia períodos em que minhas preocupações variavam e a cena não me despertava interesse. Quando então eu pensava estar livre de sua carga, às vezes cansada de tanto trabalhar, sozinha e triste no pequeno apartamento em que morava, e queria apenas me masturbar rapidamente para sentir sono e dormir, nos momentos em que estava frágil e não precisava de mais aborrecimentos, eis que eu tentava pensar em gente nua, imagens eróticas e sãs, e nenhuma conseguia me excitar. Mulheres, seios, homens, nada. Era assim que, como único remédio capaz de amenizar meu cansaço, trazendo o orgasmo e o sono, eu construía novamente a imagem vergonhosa do abuso infantil.

Foi num destes períodos de solidão e estafa que, visitando meu irmão, comentei o que se passava. Naquele tempo ele estava terminando o curso de psicologia, e, depois de minha confissão sofrida, disse algo talvez evidente, mas que eu nunca tinha imaginado:

- Denise - ele disse - não quero falar coisas sobre sua vida que não conheço direito. Mas o sexo é uma coisa muito importante na mente das pessoas. Tão importante que elas simbolizam, através do sexo, todas as preocupações de sua vida. Por exemplo: a criança é a coisa mais indefesa que existe... Um adulto, transando com uma criança, tem total poder sobre ela, que não tem como reagir. Se você tem essa fantasia, não significa necessariamente que você foi abusada e não se lembra. Pode ser que você se sinta oprimida por uma situação qualquer - o trabalho, a falta de dinheiro - e transforme essa opressão numa fantasia sexual. Numa cena em que você pode finalmente dominar a situação.

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Talvez eu estivesse errada quando decidi interromper o tratamento com a psicóloga. Meu irmão disse, ela era inteligente. Seria provavelmente mais capaz de interpretar o que não consegui.

Quando eu não queria falar, ela improvisava brincadeiras. Havia uma mesa larga no fundo do consultório, onde atendia as crianças. Um dia me chamou e colocou folhas de papel branco à minha frente. Me deu lápis coloridos e tinta guache. Pediu que eu desenhasse alguma coisa, qualquer coisa que passasse pela minha cabeça. Eu não sabia bem, demorei um pouco, envergonhada. Por fim pensei em desenhar o quintal da casa vizinha, onde morava minha amiga, que eu via da janela. Sempre que acordava e abria as cortinas, eu via esse quintal descuidado, com plantas e mato crescendo sem nenhuma ordem. Fiz o contorno do terreno e desenhei minha amiga cuidando das plantas, grávida. Eu tinha sua imagem muito clara na memória, não foi difícil. Então a psicóloga pediu que eu explicasse o que havia feito.

Comecei a falar sobre minha vizinha, sua relação com o marido que era militante de esquerda, como tomávamos café-da-manhã aos sábados e me impressionava tanto aquele casal, a barriga de minha amiga crescendo, essa criança que iria nascer mas nunca era mencionada, apenas crescia naquela barriga enquanto eles discutiam a relação da imprensa com o Movimento dos Sem-Terra.

A psicóloga perguntou por que eu havia desenhado um muro à esquerda do papel, colocando minha amiga no centro desenho e minha casa no outro canto, somente um pedaço, o bico do telhado e a janela. Eu não soube responder. Ela repetiu a pergunta: por que havia uma janela e um muro separando meu quarto do quintal e minha amiga?

Eu pensei numa resposta, mas não disse. Parecia óbvio e tive medo de dizer, pareceria talvez agressivo? Havia realmente o muro, havia a janela. Se isso era simbólico, se o muro e a janela significavam qualquer outra coisa que eu não percebia, o que eu poderia fazer? Eu desenhei o que estava lá. Era o que eu via.








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