Lésbicas procuram apartamento

Dormi a tarde inteira e sonhei que beijava uma das enfermeiras debaixo do chuveiro. Tive um orgasmo dormindo, levantei, saí de casa mas não encontrei ninguém nos botecos habituais. Estava sozinha desde que as meninas saíram na sexta de manhã, Rafaela não ligava, eu não podia aguentar tanto silêncio mas não queria bancar a desesperada. Fui até o orelhão e quase desisti. Meu celular estava sem crédito, no cartão apenas três unidades, minha única chance era ligar para o fixo e esperar que estivesse em casa.

Ela atendeu. Pedi que me ligasse de volta porque os créditos iam acabar. Fiquei ao lado do orelhão esperando a chamada. Quando finalmente tocou, respondi "oi" e não consegui mais falar.

- O que foi? - ela perguntou.
- Por que você não me ligou?
- Fui jantar com a minha mãe.
- O jantar foi ontem.
- Eu acabei de acordar.
- Pois eu passei a noite sem dormir.

Fiquei quieta novamente. Ela soltou seu gemido de garota compreensiva:

- Quer tomar alguma coisa? - perguntou, toda docinha.
- Pode ser.

Marcamos na pizzaria do sacolão. Fui até o caixa eletrônico mas só tinha oito reais e cinquenta centavos. Fiquei esperando algum milagre e finalmente apareceu um cara todo arrumado, de camisa e cinto. Perguntei cordialmente se ele poderia transferir um real e cinquenta pra minha conta. O homem não entendeu, por isso expliquei a lengalenga aritmética sobre meu saldo e as regras do maldito caixa eletrônico que solta somente nota de dez.

Mostrei meu cartão a ele:
- Não é assalto não. É verdade.

O cara fez a transferência. Homens bem vestidos gostam de ajudar jovens desleixadas, eu entendo, mas preferia que minha pobreza não lhe despertasse aquele meio sorriso.

As mesas estavam vazias e sentei no lado de fora. Rafaela chegou no carro de sua mãe e ficamos num assuntinho qualquer. Então contei do corretor de investimentos que eu tinha encontrado na noite anterior.

- Corretor?
- Ele administra investimentos de uns milionários. Chegou com um pessoal lá no boteco. Me convidaram pra uma festa.
- Quando?
- Ontem mesmo.
- E você foi?
- Fui.

Ela ficou quieta e depois me olhou irritada:

- Como assim, você foi?
- Eu fui. Você estava jantando com a sua mãe e eu não tinha nada pra fazer.

Ela quebrou uns palitos de dente. Estava bravinha.

- Por que você me conta essas coisas?
- Achei que você preferia saber.
- Merda.

Eu estava toda carente na verdade, e com fome também. Mas não podia pedir nada enquanto ela estivesse magoada daquele jeito.

- Rafa, desculpa. Eu bebi demais. Eu não queria ir... me desculpa, eu sou uma besta.

Ela foi se acalmando e segurei sua mão. Ficamos assim algum tempo e então ela perguntou se eu queria comer. Eu bem queria, mas meus dez reais eram uma triste piada. Rafaela ficou boazinha e pediu um pedaço de pizza pra mim.

- - -

Nós precisávamos de um lugar. Fazia três meses que eu estava na república das enfermeiras e já tinha percebido que não ia rolar. Elas não eram virgens nem nada, traziam às vezes namorados para dormir na sala, mas namorados normais, enfim, eu não ia criar toda uma discussão filosófica e acabar despejada. A empregada da Rafaela ainda não havia nos denunciado, mas até quando? Saíamos da aula no fim da manhã, entrávamos no apartamento, trancadas no quarto o dia inteiro escapando eventualmente pra buscar comida na cozinha. No fim da tarde ligávamos o chuveiro, aparecíamos limpinhas e lavadas pra assistir a novela das seis. Tão inocente. A empregada já estava me olhando torto, era crente, não ia tolerar a safadeza. Rafaela queria que eu alugasse um apartamento só pra mim.

- Está louca? Com que dinheiro?
- Eu te ajudo - ela dizia.

Eu não ia assinar um contrato e depender do dinheiro dela. Apesar de nosso entusiasmo, eu considerava importante manter as portas desobstruídas e sinalizadas com barras antipânico. Tínhamos que encontrar algo que eu pudesse pagar sozinha, o que não era fácil. Sendo realista, nada fácil mesmo.

Primeiro tentamos o método tradicional: apartamentos vazios, oficialmente disponibilizados por seus proprietários para alugar. Andamos por algumas travessas na baixa Augusta, olhávamos as placas e pedíamos para visitar. Eu não me importava com a qualidade, perguntava apenas o valor e as condições do contrato. As imobiliárias eram obsessivas com a palavra fiador e isso me deprimia. Eu me sentia judicialmente desamparada naquela cidade, em que não conhecia ninguém com salário e propriedades exceto meus intelectuais e inapeláveis professores.

Na minha família, claro, pais e tios trabalhando a vida toda, economizando e pagando financiamentos, mas estavam todos a 600 km de distância. Eu estava fugindo desesperadamente desse destino implacável mas era difícil: ser estudante e independente e pobre e lésbica em teoria era estupendo, mas para praticar o último adjetivo eu precisava de um lugar pra transar. Minha mesada pagava com sufoco o colchão na sala das meninas da enfermagem que conheci numa festa da Geologia, fumando maconha e rindo de qualquer coisa. Simpatizaram com meu jeito alternativo e me ofereceram dois metros de chão sem suspeitar de minhas opções alternativas também nos assuntos íntimos. Era precário, mas melhor que o pensionato de freiras remanescente dos séculos passados, que minha mãe encontrou entre as brumas com a induvidosa intenção de me enterrar viva.

Andando sozinha, encontrei uma quitinete sebosa numa travessa obscura atrás do Hospital Sírio Libanês. Preço acessível pelo motivo mencionado. Fui até o escritório do proprietário, que demonstrou gentileza surpreendente. Compreendeu que eu era estudante, meus pais moravam em Minas, tinham casa própria e podiam ser fiadores se ele aceitasse uma escritura de outro município como comprovante. Que espírito aberto, que disposição ao bom senso. Dentes bem alinhados, mãos macias segurando meu braço e oferecendo toda disponibilidade para ajudar. Disponibilidade deslizante e úmida. Nanão. Saí fora.

Rafaela ainda veio com duas opções: uma república de uruguaias lésbicas e maconheiras, perto do aeroporto. Conheceu as meninas pela internet e mostrou as fotos entusiasmada. Pela imagem desconfiei que não faziam muita questão de banho.

- Rafa, sem chance. Sou pobre mas limpinha.

Outra solução era morar no fundo de uma casa enorme e vazia, usada eventualmente em festas relâmpago que andavam na moda entre os riquinhos da cidade. Ela conhecia o organizador das baladas, colega de um primo que praticava tráfico sem fins lucrativos entre descolados.

- Mas, Rafa... quantas baladas rolam?
- Ah, é improvisado. Me avisam pelo celular a cada dez, quinze dias.
- Minha flor, cai na real: eu sou estudante. Gosto de estudar. Admiro escrivaninhas limpas e louça lavada. Não vou morar numa Woodstock domiciliar da elite paulistana.

- - -

Uma opção óbvia seria contar para Letícia, a mãe da Rafaela. Afinal tínhamos dezenove anos e o direito teórico de namorar no quarto. Essa era minha opinião, não exatamente compartilhada.

- Quando você contar pra sua mãe, eu conto pra minha - Rafaela dizia.
- Eu conto, claro. Vamos curtir dez horas de ônibus pra transar na casa dela.

Rafaela se irritava, passava dias sem me ligar. Eu também não ligava, ficávamos nesse cabo de guerra até chegar na faculdade e acabar chorando abraçadas no banheiro.

Eu não conseguia entender suas complicações. Ela parecia uma versão moderna de sua mãe, empresária poderosa que entendia de prospecções e logística, bebia gin e relaxava em Nova Iorque assistindo shows na Broadway. Rafaela só ouvia música punk, usava cabelo curto, nenhum namorado e bonita demais pra ser virgem. Não era tudo evidente? Por que ela não podia contar o que a mãe provavelmente já sabia? A mim aquela mãe assustava, naturalmente, mas eu vinha de um mundo em que pessoas jantavam pão de forma diante da TV. Rafaela acompanhava desde a pré-escola sua mãe e seus amigos em restaurantes intimistas e sofisticados. Por que não contar?

- - -

Um dia juntei toda minha serenidade. Eram quatro da tarde, estávamos peladas, abraçadas na cama dela, depois de algumas horas de atividade aeróbica.

Fiz uma pausa. Comecei.

- Rafa, nosso esquema não está funcionando. Transamos a tarde inteira e à noite fico cansada demais pra estudar. Se eu reprovar o semestre, meus pais me arrastam e vou estudar pedagogia na Universidade Católica de Juiz de Fora.

Fiz outra pausa sincera:

- Eu gostaria de ter um apartamento só pra mim. Gostaria muito mesmo. Mas vamos encarar a realidade: não tenho grana pra isso.
- Qual sua proposta?
- Contar pra sua mãe.
- Sem condições.

Eu acreditava no diálogo, estava sendo tão clara e ponderada. Deus, mulher rochosa.

- Rafa, honestamente: ela vai descobrir de qualquer maneira. Eu poderia dormir na sua casa, tranquilamente, sem esconder nada. Não seríamos forçadas a transar em horário comercial.

- Você é forçada a transar comigo?
- Não desvia do assunto.
- Foi o que você disse.
- Merda, por que você não me escuta?

Quando levantei um pouco a voz, ela disparou sobre mim a verborragia selvagem.

- Não posso te deixar uma noite sozinha que você enche a cara e trepa com qualquer idiota. Agora vai bancar a certinha e chegar de mão dada na frente da minha mãe? Quer ficar noiva e comprar enxoval? Você é patética, eu não suporto você!
- Eu não trepei com ninguém! Do que você está falando?
- Desse babaca que te levou bêbada pra uma festa!
- Eu fui na festa mas não transei, porra.
- Duvido!

Ela me empurrou pra fora da cama com raiva, agarrei seu braço mas ela não desistiu, gritava e me chutava com os joelhos, prendi seus braços, ela se revolvia mas não conseguia se soltar. Tentou me morder. Mordi também seu pescoço, o mais forte que pude pra ela se acalmar. Ela começou a chorar.

Sem soltar, sequei suas lágrimas com os lábios e a beijei. Eu chorava também. Eu a amava muito. E também amava aquele apartamento espaçoso, com belos móveis, boa comida, TV a cabo e amplas janelas com vista panorâmica.

- - -

A mãe da Rafaela estava acordada quando saí do quarto no dia seguinte. Do corredor vi suas pernas e a televisão ligada. Me aproximei e fiquei na beira da porta, para que ela pudesse me ver.

- Você dormiu aqui? - perguntou.
- Dormi.
- Rafaela não me falou nada sobre isso.
- Ela ainda está dormindo.

Continuei ali no vão da porta. Não tinha ousadia para nada além mas consegui ficar parada, até que entendesse que eu tinha intenções sérias.

- Você não parece gay - ela disse.
- Por que não?
- Sua voz é fina.
- Defeito genético.

Olhei direto pra ela, num lance de súbita coragem.

- O que você quer que eu diga? - ela perguntou.
- Eu...
- Não vou te abraçar e desejar felicidades. Não faz meu gênero.
- Nem vai me expulsar?
- Não.
- Pelo menos isso.

- - -

Naquele mesmo dia, Letícia (a mãe) nos levou para almoçar num restaurante do centro. Era um restaurante antigo aonde o avô de Rafaela gostava de ir. Pedimos entrada num certo silêncio, pois minha sogra não parecia exatamente entusiasmada.

De repente chegou o avô: moreno, grisalho, todo elástico e cheio de bossa. Rafaela era pálida - nunca imaginei que tivesse um avô tão bronzeado.

O velho conhecia todos os garçons e não sentou à mesa. Pediu um conhaque e se apoiou no balcão, palavreando com um e outro. Num determinado momento me olhou, percebeu minha mão na coxa da neta.

Deixou o conhaque e me chamou:

- Vem cá, menina. Quero te conhecer melhor.

Tive dúvidas sobre o significado naquele contexto. Olhei Rafaela e sua mãe, as duas não pareciam alarmadas.

- Vai lá, garota - disse Letícia. - Meu pai não morde.

Levantei envergonhada. Ele me olhou balanceando a cabeça.

- Quer dizer que você é amiga da garotinha ali? - perguntou, sorrindo de canto.
- É - respondi.
- E a madama deixou?
- Deixou.
- Vocês vão morar juntas ou alguma coisa?
- Estou estudando ainda. Prefiro dormir na casa da Rafaela.
- Bonito aquele apartamento.
- É mesmo - concordei.

Ele armou novamente o sorrisinho.

- Então você mergulhou no filé mignon - ele disse.
- Como?
- Está comendo carne boa em todos os sentidos.

Preferi não dar bandeira. O homem era figura. Como eu iria discordar?


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Conto publicado na revista Lado 7, n. 3, em janeiro de 2012 (editora 7Letras). 


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