Pendurando a calcinha no varal, por Carla Castelotti
(revista Ars Gratia Arts, outubro de 2008)
Eu era adolescente e passava a tarde na livraria tentando encontrar umas coisas. E numa dessas dei de cara com um lançamento da tão falada Cia das Letras — já sabia que era uma puta editora, mas nunca tinha ouvido falar na tal escritora: Sabina Anzuategui.
E foi assim, sem querer, que me apaixonei mais uma vez. Bela adolescência, belo livro. Chorei lendo Calcinha no Varal, primeiro título da autora recém-descoberta. A tarde voou enquanto não desgrudava os olhos daquelas páginas, acompanhando a história da protagonista que não raro se confundia com a própria escritora.
Comparam o livro a Feliz Ano Velho, que na época eu nem sonhava que era o hit jovem dos anos 80, do tal Marcelo Rubens Paiva (mas essa é outra história).
Instigada, saí da livraria determinada a falar todas as minhas impressões pra autora da brochura. Cacei na internet um e-mail que não era da moça, mas poderia chegar até ela. Pronto, toda aquela paixão típica da idade rendeu uma correspondência que já dura três anos. Sabina me serve de guia literata, é simples, clara e acreditou no sonho que sempre teve desde jovem.
Hoje, séculos depois (tempo dos que pouco viveram) eu dou de cara com o Casa de Alice, filme brasileiro que dizem por aí ser bom. E qual não é minha surpresa ao saber que tem dedo da Sabina no roteiro... Confiram na entrevista um pouquinho do que essa professora-estudante-escritora-roteirista pode nos dizer sobre escrever, paixões, sonhos e trabalho.
Enquanto isso dá pra acompanhar a preparação de novos escritos e outras mumunhas no www.limasdapersia.blogspot.com.
1-Você é formada em cinema, trabalha como professora do curso de Rádio e TV da Cásper Líbero, escreve livros, além de roteiros para o cinema. As linguagens- audiovisual, literária e a própria prática em sala de aula - se confundem ou podem ser somadas?
Bem, todas essas atividades nasceram de uma única idéia, que era minha obsessão infantil de ser escritora. Por causa disso estudei cinema, pois queria fazer um curso de criação, não um curso de letras, que imaginava ser uma faculdade para formar professores... Desde o início do curso só me dediquei a roteiros, nem chegava perto dos equipamentos ou qualquer coisa vagamente técnica. Eu amava meu professor, Jean-Claude Bernardet, que me ensinou muito sobre estilo de narrativa, diálogo, personagens, etc.
Quando me formei, comecei a trabalhar com roteiro, mas não tinha estrutura emocional para a vida de freelancer. A incerteza quanto ao dinheiro me incomodava muito. Por isso fiz pós-graduação, e meio por acaso comecei a dar aulas. Ou seja: justamente o que eu não queria, quando fiz vestibular.
Mas foi o caminho que achei: antes procurei vários empregos de meio-período, e isso praticamente não existe no Brasil. Então acabei encontrando um jeito de dar aulas com prazer, o que foi difícil no início. Eu tenho um jeito meio retraído, e os alunos de faculdade são muito agitados. Precisei exercitar minha autoridade, digamos assim. Mas o objetivo é sempre o mesmo: tem um salariozinho fixo sem ocupar muito meu tempo, para poder escrever.
Hoje em dia, só faço roteiros quando o pagamento é bom. Não faço mais pelo lado "artístico" somente. Porque a chance de dispersão é muito grande, com tantas atividades. Preciso manter o foco e ficar sempre relembrando a mim mesma de minhas prioridades.
Ah, agora percebi que só falei de salários e pagamentos, e não de linguagem... Mas, sinceramente, não sou muito teórica. Acredito mais num modo de ver a vida, no cotidiano, que também é estético. Essa visão é a base das coisas que faço, aulas, textos, roteiros.
2-Quais são suas referências?
É difícil resumir. Na adolescência eu estava mergulhada na cultura trash americana... filmes de terror, quadrinhos, anos 60, contracultura, Almodovar, David Lynch. No curso de cinema tive uma fase cult - Antonioni, Bressane, Rohmer.
Agora estou totalmente dedicada a estudar o processo da literatura no Brasil, principalmente desde o início do séc. XIX, quando surgiram as primeiras editoras e os escritores românticos. Pra mim é muito importante construir uma referência, e não apenas aceitar o que está mais evidente e disponível. De certa maneira eu me cansei desse lixo da indústria cultural que me divertia quando era mais nova, no fundo essas coisas são muito repetitivas.
Mas além desse estudo programático sobre a literatura brasileira, tem alguns escritores que me marcaram muito: Elizabeth Bishop, Peter Handke, Marcel Proust.
3- No caso do Roteiro da Casa de Alice, existiu alguma identificação? Como foi produzir esse roteiro?
Eu trabalhei na última versão do roteiro. Toda a história já estava planejada, mas havia uma questão de estilo ainda por resolver. Tinha excesso de diálogos, algumas piadas muito populares, o roteiro não era parecido com o filme que resultou, seco e preciso.
Meu trabalho com o Chico foi justamente buscar essa exatidão. Mas muitas vezes ele se recusava. Dizia "é o meu primeiro filme... prefiro filmar bastante, e depois não usar, do que não filmar". Foi isso que ele fez. Muitas coisas que eu sugeri tirar do roteiro, ele recusou naquele momento, e depois tirou na montagem. Foi parte do amadurecimento dele. Um cineasta brasileiro (acho que o Person) dizia que o roteirista é o psicanalista do diretor.
4- Seu trabalho construindo roteiros se baseia mais em pesquisa e técnica ou há aquela inspiração particular na hora de adaptar uma história para um roteiro?
Há bastante técnica. Alguma pesquisa, quando é necessário. E sobre inspiração, não gosto de usar essa palavra. Prefiro dizer assim: alguns cientistas compreendem a criatividade como a capacidade de relacionar coisas que aparentemente não têm relação nenhuma... isso me parece verdade, a observação e a memória são a base da criatividade.
Eu faço um esforço de exercitar minha memória em detalhes quase obsessivos, e também me deixo bem livre na vida para fazer coisas estranhas e conhecer pessoas diferentes, porque acho que é dessas reuniões aleatórias de lembranças soltas que aparecem as idéias.
Tem uma frase do Kurt Vonnegut em "Cama de gato": "Nunca recuse um convite estranho. Convites estranhos são aulas de dança oferecidas por deus."
5- Com o filme acabado, é possível perceber sua contribuição na história, perceber o seu olhar sob a obra?
Às vezes o filme demora tanto para ficar pronto que até esqueco o que escrevi... trabalhei num filme infantil de animação, por exemplo, que demorou 8 anos pra estrear! (Garoto Cósmico, chama-se)
Não fico muito ligada afetivamente aos roteiros. Pra mim é um trabalho. Faço com carinho, mas não são meus "filhos", digamos assim. São filhos do diretor.
6- Pra você, Sabina, é possível dar essa virada no destino? Acreditar na paixão, ou é tudo muito mais determinado?
Virada no destino... você diz profissionalmente? Bem, eu tive muitas dúvidas quando fiz vestibular pela primeira vez, e, com medo de "passar fome" se escolhesse uma carreira de artes, me matriculei num curso de Engenharia de Alimentos. Mas no primeiro ano ficou evidente que eu não me encaixava naquilo: não suportava meus colegas, não tinha interesse pelo curso, só assistia as aulas por obrigação e depois ia para o Instituto de Artes. Todos os meus amigos eram de outros cursos: Letras, Sociologia, etc. Meu pai me ajudou nessa decisão, ele disse "se você não gosta de seus colegas agora, depois só vai piorar, porque depois da faculdade seus amigos vão ser as pessoas que trabalham com você",
Quando resolvi mudar de curso, e fiz o vestibular para cinema, foi um salto no escuro. Era 92, quase não havia cinema nacional por causa da extinção da Embrafilme no governo Collor, ou seja, eu estava me candidatando a um curso que visivelmente não tinha perspectivas profissionais. Depois descobri que não é bem assim... todas as áreas de artes têm algum caminho de trabalho, seja em escolas, seja na publicidade, enfim, dá pra se sustentar enquanto você dedica o tempo livre para desenvolver um trabalho pessoal. Difícil ganhar muito dinheiro, mas também não se passa fome.
Me parece que as pessoas (famílias e adolescentes) não conhecem realmente o meio cultural brasileiro, por isso têm tanto medo de escolher uma profissão nessa área. Não é por acaso que muitos colegas no curso de cinema eram filhos de professores universitários - são família que têm mais intimidade com as artes, e menos medo por extensão.
Concluindo: todo o processo de escolha profissional, e o início de carreira também, foi muito difícil para mim. Tive muito medo e me apegava à minha obstinação, não queria desistir de jeito nenhum. Quando me formei, comentava com meus amigos que era o "point of no return". Não chamaria nem de paixão, era uma idéia fixa mesmo.
Mas, hoje, penso que não precisaria ser tão difícil assim. A vida não é nenhum monstro, não existe ninguém conspirando para que a gente faça o que não quer. A maioria das barreiras são internas, e a gente às vezes não percebe.
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