Coisas difíceis de ressuscitar
Eu cursava o segundo ano de Cinema quando um professor nos entregou o artigo “Escrevendo histórias”, da autora estadunidense Flannery O’Connor. Era um xerox da edição em inglês. Foi o texto mais marcante que li sobre a arte de escrever. Fiz uma tradução, quando me tornei professora, pensando em compartilhá-lo com meus alunos. Mas poucas vezes o usei nas turmas. É curioso como deixamos de lado o que foi mais forte para nós.
Lembrei de Flannery ao ler Coisas difíceis de ressuscitar, a impactante coletânea de contos de Juliana Garbayo. Os detalhes, a precisão, os sentimentos implícitos. Flannery diz: “A ficção opera pelos sentidos... ela lida com a realidade através do que pode ser visto, ouvido, cheirado, saboreado ou tocado”. Em Coisas difíceis de ressuscitar, a realidade sensível é um dos pontos mais fortes.
Minha primeira reação foi de impacto estético, pela técnica narrativa do conto “Um tempo para cada coisa”. A realidade, ali, é construída também pelo negativo, o que já não pode ser tocado. “Sinto muito, não conseguimos salvar seu pé.”, é a primeira frase do conto. Quem fala é o médico, doutor Taylor, comunicando ao narrador (Heitor) que teve o pé amputado depois de um acidente de moto.
A imagem cortante se abrirá para um mundo de perdas e sentimentos abafados: a morte da mãe, depois da avó, o afastamento da tia e da prima, o pouco que lhe restou. São pequenas ações que se seguem à amputação: o quarto de hospital, a visita do médico, da enfermeira, recomendações de fisioterapia e prótese... esse cotidiano clínico se mistura às lembranças da infância e alguns elementos góticos. Flannery O’Connor diz: “... é uma característica peculiar da ficção que sua superfície mostra uma diversão simples para um tipo de leitor, enquanto tem ao mesmo tempo um significado maior para aqueles que estão preparados para experimentar.” Essa característica é desenvolvida com muita sabedoria no conto de Garbayo.
O que Heitor fazia na moto, no acidente que catalisa a narração? Trabalhava, passeava? A história não nos diz. Temos traços da condição econômica da família (casa de praia, iogurte, taxi, um jazigo), mas quase nada sobre Heitor. A moto, hoje, nas grandes cidades brasileiras, remete ao trabalho dos motoboys, ao transporte de uma classe intermediária que tenta economizar tempo nos longos deslocamentos em avenidas engarrafadas. O conto evoca esse mundo familiar aos leitores brasileiros, através da palavra: moto. Esse detalhe ambíguo – a moto – pode ser ligado ao trabalho, mas poderia também ser de um motoqueiro bolsonarista, como saber? A imagem final, a Bíblia – que remete ao título do conto – nos faz supor um universo social amplo, a partir das dez páginas da história. Amplo, ambíguo. Triste, conformado.
A qualidade desso conto se mantém em toda a coletânea. “Açucena”, narrativa vertiginosa de cinco páginas, narra a trajetória de solidão e solidariedade entre mãe e filha, num ambiente de carestia e racismo – e o trabalho duro para possibilitar uma vida melhor às gerações seguintes. Um relâmpago que atravessa nossa história, com melancolia e inteligência. Depois da leitura, chorei. A luta de mães sozinhas pela independência de suas filhas nos toca fundo.
Flannery O’Connor diz: “Há duas qualidades que fazem a ficção. Uma é o senso de mistério, e a outra é o senso dos costumes. A gente tira os costumes da textura da existência que nos cerca.” (O artigo faz parte da coletânea Mistérios e costumes, lançada no Brasil em 2023.) É com certo constrangimento que cito insistentemente a autora dos EUA. Porém, me justifico: no sul de seu país, ela lidou com tensas desigualdades próximas às nossas.
Um aspecto marcante do livro de Juliana Garbayo é a sofisticação com que retrata nossa matéria humana. As injustiças, a segregação, a crueldade difusa que encaramos arduamente, cotidianamente. “O antiquário de Madame Bernard” e “Aqui o mar os escombros você” são contos admiráveis que retratam a desigualdade de forma sutil e complexa. São composições fortes, esteticamente, pelo que têm de subtexto; camadas densas de significado que sustentam a narração simples na aparência.
As imagens dúbias – como o estranho animal mariposa-colibri do conto “Dúvida” – constroem um mundo que nos chama à interpretação. É notável o uso da primeira pessoa: vários contos demoram a definir se o “eu” narrador é masculino ou feminino. Através desse “eu”, que se caracteriza aos poucos, oscilamos entre as peles de homem ou mulher, antes de nos situarmos.
Em verdade, não nos situamos. Permanecemos deslocados como os personagens, espantados com o mistério da existência, tão comum e tão estranha. Observamos, de fora e de dentro, como a jovem narradora do conto “Aqui o mar os escombros você”, que invade a casa vazia de um casal de estrangeiros e experimenta o potencial abismo da vida adulta e do casamento:
“Então o cachorro levanta a pata de trás e dispara um jato de urina na haste do guarda-sol, o mijo quente respinga nas minhas pernas e deixa marcas profundas na areia, olho para trás e o uruguaio acena, me pede desculpas, mas o vento que vem do mar carrega sua voz e não ouço nada, ele começa a caminhar em minha direção, mas sua mulher o puxa de volta e se vira de costas, ele desamarra o sutiã do seu biquíni e ela estende a canga para se bronzear, o cachorro corre para longe e o uruguaio me esquece.”
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