No Trem dos Homens Escritores, de Isabel Lustosa (2000)
Hoje encontrei esta crônica de Isabel Lustosa, que salvei no meu computador há 22 anos:
No trem dos homens escritores
Inês Pedrosa <colunista@no.com.br>
Vivi um mês e meio longe de Lisboa, num trem lindo e lento, forrado de escritores de todas as idades. Foi duro. Sete mil quilómetros, de Lisboa a Berlim, passando pela mítica S. Petersburgo e pela arqueologia soviética de Minsk e Kaliningrado. Sim, foi muito duro. Dúzias de big brothers espiando em cada compartimento, de caneta afiada. Mas o mais duro foi ouvir permanentemente catadupas de elogios a Lisboa.
Ah, a saudade! Que seria de uma portuguesa sem essa aura loura e louca? Pois os meus cem companheiros de aventura, de cada vez que tínhamos de arcar com as bagagens ao lombo, ou de fazer fila num buffet desprovido, choravam mais do que eu: " Ah, em Lisboa as coisas eram muito mais organizadas!". Enfim. Foi necessário que uns alemães me enfiassem num trem, rumo a Leste, com a Europa inteira, para que eu percebesse, ao fim de 38 anos, que o meu país é organizado. Está-se sempre a aprender.
E o que eu aprendi, nestes quarenta dias comunitários. Nossa Senhora. Aprendi sobretudo as, digamos, "nuances" do homem europeu - vantagens de pertencer a uma minoria de vinte por cento de mulheres escritoras, no trem.
Comecemos pelo Leste, até porque, apesar da globalização, o Leste continua relativamente monolítico e simples. De uma forma geral, pode dizer-se que os homens de Leste, embora com evidentes dificuldades financeiras, são os mais dispostos a abrir os cordões à bolsa ao amor pago. Ao contrário dos ingleses ou franceses, que se lamuriavam da insistência das Olgas que lhes telefonavam para os quartos a meio da madrugada ou às sete da manhã, oferecendo os seus serviços, russos e albaneses saíam galhardamente dos bares dos hotéis com as trabalhadoras pelo braço. O estónio Peeter Sauter escreveu um poema em que diz que a União Européia já existe ao nível da prostituição, da poesia e da filosofia - mas nunca se realizará ao nível político. Talvez tenha razão. Numa extraordinária reunião da minoria feminina do trem, em Varsóvia, as falantes de russo pretendiam mesmo que elaborássemos uma declaração conjunta para proibir os seus compatriotas de se gabarem pelo trem fora, diante delas, dos feitos e dos preços das últimas noites. Às ocidentais, parecia-lhes evidentemente ridícula tal medida; aconselhámo-las a manifestarem de viva voz o seu desagrado - não sem antes termos sugado delas toda a informação literária sobre a tipologia dos serviços e o respectivo preçário, de país para país.
Talvez seja também uma questão de geração; é que muitos dos escritores de Leste ultrapassavam os cinquenta anos de idade que a organização estabelecera como limite ideal (por razões de saúde). No entanto, dobrado o cabo dos sessenta ou mesmo setenta anos, pareciam mais robustos e prazenteiros do que muitos dos seus companheiros de vinte. Por outro lado (ou talvez pelo mesmo), os homens de Leste mostraram-se particularmente tímidos no contacto com as suas irmãs de escrita: muito faladores entre si, muito pouco faladores connosco. Na despedida final, avançavam de mão estendida para os nossos braços abertos. Claro que há excepções: os três arménios desta viagem, por exemplo, cantavam, tocavam piano, dançavam como nuvens no céu e ofereciam a última fatia de pão do trem ao esfomeado mais próximo. Porque a comida acabava frequentemente antes do trajecto.
Os nórdicos manifestaram-se extraordinariamente calorosos. Conseguiam decorar o nome de toda a gente e cumprimentavam-nos com gestos teatrais, vinte vezes por dia. O islandês Einar Gunnarson, por exemplo, emprestou-me um chapéu de chuva que eu julgava suplementar e era único, submetendo-se aos aguaceiros infindáveis da Polónia e de todos os países bálticos, por puro cavalheirismo.
Ingleses, gregos, franceses e belgas eram do género "melhor amigo instantâneo". Casados e bem comportados, passaram por algumas aflições com a imprensa, por causa de legendas insidiosas do género: "O poeta Kamiel Vanhole à janela do trem, com a sua nova musa", e conseguiram, em alguns casos, convocar as consortes para que os acompanhassem durante partes da viagem.
À medida que o cansaço aumentava, os escritores tendiam a acomodar-se por línguas. Assim, acabei por atarraxar uns "los" e "las" às frases, e, na facilidade desse "portunhol", convivi particularmente com a equipa espanhola, constituída por quatro homens: um madrilenho (casado com uma das assistentes - porque, para facilitar burocracias, para cada meia-dúzia de escritores havia um assistente), um galego, um catalão e um basco. Nas horas que passámos dentro do trem, parados, na fronteira entre a Alemanha e a Polónia, o basco e o catalão deram-me uma verdadeira lição de Filosofia de Sedução Masculina. Princípio nº 1, ou Princípio da Fronteira Temporal: "Se A se apaixona por B e é rejeitado, que se defenda de ir atrás de C em busca de cura, porque será igualmente recusado. Há que preservar um cordão sanitário de tempo". Este princípio liga-se estreitamente ao Princípio da Aleatoridade, segundo o qual: "se um homem bonito tenta seduzir uma mulher e não o consegue, todas as outras, em seguida, o recusarão igualmente". A não esquecer, o Princípio da Invisibilidade, segundo o qual "Se uma mulher dá o primeiro passo e é rejeitada, o homem que a rejeitou tornar-se-á permanentemente invisível". O sucesso de uma campanha de sedução depende, acima de tudo, segundo estes especialistas, da Arte de Insistir Sem Que Se Note - um subtil cocktail de ubiquidade e casualidade no contacto. Conquistada a presa, terá que se atender à "Teoria da Parcialidade Dialogante", que manda simular uma certa (ainda que não total) cegueira face ao interesse que outras mulheres possam demonstrar pelo homem em questão.
Entretanto, um dos escritores, nem sequer particularmente feio, queixava-se de que nunca nenhuma mulher se apaixonara por ele à primeira vista. Respondia-lhe outro que não conhece nenhuma mulher que se apaixone por um rosto - que só aos homens isso acontece. Um terceiro acrescentaria que as mulheres funcionam a lume brando: encantam-se devagar, mas também demoram mais tempo a desencantar-se.
Melhor do que qualquer teoria, porém, é a história do pirómano e do poeta, que Edorta Jimenez, o basco, inventou. O pirómano incendiou uma floresta por amor a uma mulher que o rejeitou - e foi preso. E ela amou-o por esse incêndio. O poeta, que amava a mesma mulher, enviava-lhe todos os dias um poema - e gastou outra floresta nisso. "Mas a mulher só amou um deles", concluiu Edorta, que dantes escrevia poemas.
PS: Se quiserem saber que outras coisas fomos todos aprendendo ao longo da viagem, consultem os nossos diários de viagem on-line, em www.literaturexpress.org. E boa viagem!
Comentários
Postar um comentário