O afeto, primeiro capítulo (versão 2004)
Será talvez uma maneira simplória de apresentar as coisas, sem moldá-las num conjunto que torne enigmática a relação entre os fatos, mas depois de várias tentativas de organização, sem nenhum resultado que continuasse estimulante depois de alguns dias, me ocorreu que seria melhor assumir, em minha própria voz, este ponto de partida. Há uma história que desejo escrever, a partir de lembranças de quando tinha onze anos. Esta história tem algumas cenas que me parecem tão importantes; os pés descalços de minha amiga Paula, de castigo, à beira da piscina da escola; seus dedos segurando o banco de madeira, quando passamos as férias de inverno na praia; o olhar de Juliana no último dia em que nos encontramos no condomínio. São cenas que eu tinha perdido na memória, embaçada por muito tempo, presa num mecanismo viciado de obsessões afetivas e carências crônicas. Mas quando me vi libertada desta angústia, aos poucos foram voltando à minha mente imagens curiosas, relações insuspeitas que mantive em minha infância, e desenhavam uma visão de mim mesma que eu nem imaginava, pois andava iludida por esta outra figura entristecida, que finalmente consegui desmembrar.
Comecei a colecionar as novas lembranças, passei alguns meses a ordená-las, esclarecendo ligações, reagrupando detalhes, que dispersos fariam menos sentido. Foi um trabalho que me divertiu bastante, pois se assemelhava, de certa maneira, a atividades que sempre me agradaram, como lavar louça, e resolver equações matemáticas na escola. A partir de um amontoado indesejável de elementos - pratos sujos sobre a pia, misturados a talheres e panelas; números ocultos por operações matemáticas agrupadas e encobertas - iniciava um ciclo metódico e ordenador, em que separava as partes, limpava-as de seus excessos, e reencontrava nelas a unidade de origem. Foi com este espírito que limpei os traços de minha coleção de lembranças, e me considerei pronta para recontá-las. Mas de repente senti o risco de que esta história no fundo banal, de meu despertar de adolescente, se fosse narrada simplesmente, como lembrança minha, que hoje não sou nada, nem tenho conclusão ou revelação a fazer sobre ela, podia afinal não dizer nada a ninguém.
Pensei então em criar um mecanismo qualquer de atração. Uma das primeiras idéias que me ocorreu, foi transformar estas lembranças num diálogo escrito entre mãe e filha, num caderno que as duas teriam como diário conjunto. Imaginei a personagem de uma mãe jovem, muito ocupada no trabalho que a remunerava pouco, e preocupada com o afastamento que isto causaria entre ela e a filha. Esta mãe presentearia a filha com um caderno, propondo que ambas escrevessem nele todo dia um pouco, contando pequenas coisas do dia que passava, assim, mesmo quando tivessem pouco tempo para se encontrar, a filha voltando da escola quando a mãe saía para aulas noturnas, haveria sempre um contato, um espaço compartilhado, uma confidência de fatos cotidianos e emoções.
Esta idéia me pareceu simpática por várias semanas, e até ensaiei um capítulo inicial, a carta em que a mãe contaria a idéia do caderno à filha. Mas depois de um tempo - sofro às vezes com tanta indecisão e relutância - senti que este esquema tenderia a um sentimentalismo banal, cansativo. É um problema constante que tenho, fico sonhando com idéias que sustentem um fôlego longo, páginas e páginas, meses e meses de atenção. Mas desenvolvo uma desconfiança, um medo exagerado de enjoar de minhas próprias idéias, e acabo por abortá-las precipitadamente.
Durante muitos anos, eu tinha um pensamento recorrente que me envergonhava muito. Quando era noite, e eu sentia vontade de me masturbar, a cena que me vinha à mente era a sedução de um homem adulto, que convencia uma menina aceitar a penetração. Nesta cena que construí centenas de vezes, em vários ambientes e posições, não havia beijos, nem bolinações, nem outros contatos físicos além dos necessários à pentração. Não era uma cena de estupro; era a lenta estratégia em que a criança só percebia a violência a que fora submetida quando já não tinha possibilidade de escapar.
Eu tinha uma vergonha e uma dúvida. A primeira era pensar que eu mesma, que queria me considerar uma pessoa boa, tivesse algo mau dentro de mim, uma vontade que, mesmo não admitida, existia e era cruel. A segunda, era temer que esta violência tivesse sido infligida a mim quando pequena, numa situação que eu não recordasse, mas tivesse alterado ou condenado minha saúde emocional.
Carreguei esta vergonha por muitos anos. Havia períodos em que minhas preocupações variavam, e a cena não me despertava interesse. Quando então eu pensava que estava livre de sua carga, às vezes cansada de tanto trabalhar, sozinha e triste no pequeno apartamento em que morava, e queria apenas me masturbar rapidamente para sentir sono e dormir, nos momentos em que estava frágil e não precisava de mais aborrecimentos, eis que eu tentava pensar em gente nua, imagens eróticas e sãs, e nenhuma conseguia me excitar. Mulheres, seios, homens, bundas, nada. Era assim que, como único remédio capaz de amenizar meu cansaço, trazendo o orgasmo e o sono, eu construía novamente a imagem vergonhosa do abuso infantil.
Foi num destes períodos de solidão e estafa que, visitando meu irmão, comentei com ele o que se passava. Ele naquele tempo lia alguns livros de psicologia, e, depois de minha confissão sofrida, disse algo que mudou totalmente meu modo de pensar:
- Denise -, ele disse, - eu não entendo muito de psicologia. Mas pelo pouco que entendi até agora, o sexo é uma coisa muito importante na mente das pessoas. Tão importante que elas simbolizam, através do sexo, todas as preocupações de sua vida. Por exemplo: a criança é a coisa mais indefesa que existe... Um adulto, transando com uma criança, tem total poder sobre ela, que não tem como reagir. Se você tem essa fantasia, não significa necessariamente que você foi abusada e não se lembra. Pode ser que você se sinta oprimida por uma situação qualquer - o trabalho, a falta de dinheiro - e transforme essa opressão numa fantasia sexual. Numa cena em que você pode finalmente dominar a situação.
De alguma maneira, tudo isso se encaixa para mim. A mesma opressão que podia gerar uma fantasia de abuso infantil, poderia também se traduzir na idéia da mãe ocupada que oferecia um caderno como substituto do convívio com a filha. São coisas que para mim fazem sentido, embora eu entenda de psicologia muito menos que meu irmão. Agora me lembra também outra história que tentei escrever, e acabou interrompida. Foi um texto que chamei de "Minhas amigas começaram a ter filhos enquanto explodia o movimento sem-terra". Inventei na época um método de composição dos capítulos, baseado em uma teoria aleatória de que não me lembro mais. Escrevi cerca de dez capítulos, e depois acabaram minha idéias sobre aquilo, meu interesse. Mas lembro de uma cena em que eu, narrando, me colocava atrás de uma janela, pela qual via minha amiga no quintal, cuidando de sua filha pequena. Meu plano era que contar a história da narradora, que se via sozinha quando suas amigas estavam casadas e tendo filhos. Sem encontrar um amor pra si, cansada do trabalho e da cidade, ela decidia entrar no movimento dos sem-terra, identificando-se com ele, em sua carência de afeto.
Na única cena que me ficou na memória, uma janela separava a mulher sozinha, no interior de um quarto dos fundos, observando em silêncio, do quintal ensolarado onde brincavam a amiga e sua criança.
Comecei a colecionar as novas lembranças, passei alguns meses a ordená-las, esclarecendo ligações, reagrupando detalhes, que dispersos fariam menos sentido. Foi um trabalho que me divertiu bastante, pois se assemelhava, de certa maneira, a atividades que sempre me agradaram, como lavar louça, e resolver equações matemáticas na escola. A partir de um amontoado indesejável de elementos - pratos sujos sobre a pia, misturados a talheres e panelas; números ocultos por operações matemáticas agrupadas e encobertas - iniciava um ciclo metódico e ordenador, em que separava as partes, limpava-as de seus excessos, e reencontrava nelas a unidade de origem. Foi com este espírito que limpei os traços de minha coleção de lembranças, e me considerei pronta para recontá-las. Mas de repente senti o risco de que esta história no fundo banal, de meu despertar de adolescente, se fosse narrada simplesmente, como lembrança minha, que hoje não sou nada, nem tenho conclusão ou revelação a fazer sobre ela, podia afinal não dizer nada a ninguém.
Pensei então em criar um mecanismo qualquer de atração. Uma das primeiras idéias que me ocorreu, foi transformar estas lembranças num diálogo escrito entre mãe e filha, num caderno que as duas teriam como diário conjunto. Imaginei a personagem de uma mãe jovem, muito ocupada no trabalho que a remunerava pouco, e preocupada com o afastamento que isto causaria entre ela e a filha. Esta mãe presentearia a filha com um caderno, propondo que ambas escrevessem nele todo dia um pouco, contando pequenas coisas do dia que passava, assim, mesmo quando tivessem pouco tempo para se encontrar, a filha voltando da escola quando a mãe saía para aulas noturnas, haveria sempre um contato, um espaço compartilhado, uma confidência de fatos cotidianos e emoções.
Esta idéia me pareceu simpática por várias semanas, e até ensaiei um capítulo inicial, a carta em que a mãe contaria a idéia do caderno à filha. Mas depois de um tempo - sofro às vezes com tanta indecisão e relutância - senti que este esquema tenderia a um sentimentalismo banal, cansativo. É um problema constante que tenho, fico sonhando com idéias que sustentem um fôlego longo, páginas e páginas, meses e meses de atenção. Mas desenvolvo uma desconfiança, um medo exagerado de enjoar de minhas próprias idéias, e acabo por abortá-las precipitadamente.
Durante muitos anos, eu tinha um pensamento recorrente que me envergonhava muito. Quando era noite, e eu sentia vontade de me masturbar, a cena que me vinha à mente era a sedução de um homem adulto, que convencia uma menina aceitar a penetração. Nesta cena que construí centenas de vezes, em vários ambientes e posições, não havia beijos, nem bolinações, nem outros contatos físicos além dos necessários à pentração. Não era uma cena de estupro; era a lenta estratégia em que a criança só percebia a violência a que fora submetida quando já não tinha possibilidade de escapar.
Eu tinha uma vergonha e uma dúvida. A primeira era pensar que eu mesma, que queria me considerar uma pessoa boa, tivesse algo mau dentro de mim, uma vontade que, mesmo não admitida, existia e era cruel. A segunda, era temer que esta violência tivesse sido infligida a mim quando pequena, numa situação que eu não recordasse, mas tivesse alterado ou condenado minha saúde emocional.
Carreguei esta vergonha por muitos anos. Havia períodos em que minhas preocupações variavam, e a cena não me despertava interesse. Quando então eu pensava que estava livre de sua carga, às vezes cansada de tanto trabalhar, sozinha e triste no pequeno apartamento em que morava, e queria apenas me masturbar rapidamente para sentir sono e dormir, nos momentos em que estava frágil e não precisava de mais aborrecimentos, eis que eu tentava pensar em gente nua, imagens eróticas e sãs, e nenhuma conseguia me excitar. Mulheres, seios, homens, bundas, nada. Era assim que, como único remédio capaz de amenizar meu cansaço, trazendo o orgasmo e o sono, eu construía novamente a imagem vergonhosa do abuso infantil.
Foi num destes períodos de solidão e estafa que, visitando meu irmão, comentei com ele o que se passava. Ele naquele tempo lia alguns livros de psicologia, e, depois de minha confissão sofrida, disse algo que mudou totalmente meu modo de pensar:
- Denise -, ele disse, - eu não entendo muito de psicologia. Mas pelo pouco que entendi até agora, o sexo é uma coisa muito importante na mente das pessoas. Tão importante que elas simbolizam, através do sexo, todas as preocupações de sua vida. Por exemplo: a criança é a coisa mais indefesa que existe... Um adulto, transando com uma criança, tem total poder sobre ela, que não tem como reagir. Se você tem essa fantasia, não significa necessariamente que você foi abusada e não se lembra. Pode ser que você se sinta oprimida por uma situação qualquer - o trabalho, a falta de dinheiro - e transforme essa opressão numa fantasia sexual. Numa cena em que você pode finalmente dominar a situação.
De alguma maneira, tudo isso se encaixa para mim. A mesma opressão que podia gerar uma fantasia de abuso infantil, poderia também se traduzir na idéia da mãe ocupada que oferecia um caderno como substituto do convívio com a filha. São coisas que para mim fazem sentido, embora eu entenda de psicologia muito menos que meu irmão. Agora me lembra também outra história que tentei escrever, e acabou interrompida. Foi um texto que chamei de "Minhas amigas começaram a ter filhos enquanto explodia o movimento sem-terra". Inventei na época um método de composição dos capítulos, baseado em uma teoria aleatória de que não me lembro mais. Escrevi cerca de dez capítulos, e depois acabaram minha idéias sobre aquilo, meu interesse. Mas lembro de uma cena em que eu, narrando, me colocava atrás de uma janela, pela qual via minha amiga no quintal, cuidando de sua filha pequena. Meu plano era que contar a história da narradora, que se via sozinha quando suas amigas estavam casadas e tendo filhos. Sem encontrar um amor pra si, cansada do trabalho e da cidade, ela decidia entrar no movimento dos sem-terra, identificando-se com ele, em sua carência de afeto.
Na única cena que me ficou na memória, uma janela separava a mulher sozinha, no interior de um quarto dos fundos, observando em silêncio, do quintal ensolarado onde brincavam a amiga e sua criança.
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