Um vestido azul

Alguns anos atrás, trocando de canal durante a noite, assisti por acaso à entrevista de uma velha escritora francesa. Eram imagens antigas em preto e branco, a mulher teria talvez cinquenta anos, quando isso era muita idade. Ela segurava o cigarro aceso, tinha voz rouca e rosto mal-humorado. Falou muito, movendo as mãos amplamente, mas esqueci quase tudo. Lembro apenas o que disse sobre suas roupas.

Aos quarenta anos, ela decidiu que usaria um só figurino: saia reta e blusa preta. Não queria mais se preocupar. Cansou de gastar suas horas pensando se estava mesmo bonita ou bem vestida. Escolheu uma imagem e seguiria a vida esquecendo o assunto.

A decisão extrema tinha pouca relação com as roupas. Principalmente, irritava-se com jornalistas que a descreviam sempre da mesma maneira: "além de escritora, é também uma bela mulher". Repetia desgostosa as variações da mesma idéia: "hoje reconhecida, foi uma linda jovem durante a guerra", ou "seu talento com as palavras se revela nos gestos insinuantes". Ela não queria que olhassem seus gestos. Seus livros eram mais importantes.

Não sou francesa, nem fumante, mas a declaração me marcou. Durante algum tempo imaginei que seria bonito fazer o mesmo. Mas fui esquecendo, por preguiça ou inércia.

Tenho pouca familiaridade com a moda, é verdade. Mas gosto de visitar lojas e escolher peças bonitas quando meus cabides ficam deprimidos pelo excesso de tecido desbotado. Minhas roupas novas costumam ser versões revisadas de modelos antigos: tons castanhos, um pouco de azul ou amarelo nos dias mais alegres. As coleções passam mas consigo manter meu estilo - deve existir uma parcela constante de mulheres tímidas, que movimenta o modesto mercado das roupas inofensivas.

Fazia muito tempo que não pensava nisso. Mas semana passada recebi o convite para o casamento de uma prima, e fiquei apavorada. Ando numa fase difícil porque decidi comprar um pequeno apartamento. No início parecia fácil, pois a dona gostava de mim e fez um preço especial. Consegui um financiamento de longo prazo, mas me entusiasmei com pequenas reformas. Elas foram aumentando, precisei fazer outro empréstimo e agora tenho duas prestações para pagar. Trabalho muito e sobra pouco.

Se eu fosse moderna e ousada, poderia ir ao casamento envolvida num tecido solto, ou vestir um paletó sobre as pernas nuas. Moças criativas e bonitas se arriscam mais, porque são criativas, talvez, e bonitas certamente. Mas eu sou comum. Numa festa preciso de um vestido, para que ninguém me olhe verificando se estou arrumada demais ou de menos.

Pensei em procurar numa loja popular, pois os pobres quando casam também convidam seus parentes, e não há tanta distância entre mim e a pobreza. Além disso, tinha poucos motivos para caprichar. Faz quatro anos que não vejo essa prima. A festa estará repleta de tias e tios e sogras dos cunhados dos meus irmãos. Um vestido discreto seria suficiente para acompanhar minha mãe, que adora rever a família em batizados e missas de sétimo dia.

Fui a uma loja em Santo Amaro com o espírito aberto. O que esperava encontrar? Renda nordestina, bordados de Ibitinga... minha visão da pobreza estava meio desatualizada. E foi atropelada pelo horror da verdade. Nem um cão farejador encontraria ali um mísero retalho de algodão. Se havia alguma cor discreta, estava escondida embaixo das lantejoulas. O criador dos modelos parecia ignorar que duas partes de tecido pudessem se unir sem um babado no meio. Desnorteada entre ondas de angústia, procurei meu caminho até a saída.

Vivo há tantos anos em meu cantinho que esqueci tudo sobre festas. Quando vou ao shopping, visito apenas lojas amistosas: claras, diurnas, como professora passeando aos domingos.

Cheguei em casa melancólica, deitei no sofá e abracei uma almofada. Eu queria tão pouco... As pessoas se esforçam para ser especiais, mas eu não precisava. Queria ser simples como uma fisioterapeuta de uniforme branco. Queria um vestido de aeromoça a rigor.

Fiquei encolhida, cansada e triste. O céu escurecia mas não pude resistir ao sono. Dormi profundamente e comecei a sonhar. Um sonho nítido como um filme.

Eu estava na minha antiga escola, e tinha catorze anos. Era magra e alta como uma modelo (o que nunca fui). O chão estava coberto por vestidos. Minhas colegas olhavam, experimentavam e se divertiam. “Esse é mais bonito! Esse é meu!” Eu me escondia num canto, envergonhada. Nenhuma roupa me servia. “Tenho as melhores notas da classe”, pensava, “mas ninguém trouxe roupas para mim”.

A sala ficou enorme, eu via as garotas cada vez mais distantes. Nisso a zeladora da escola se aproximou, num guarda-pó azul claro. “Você está chorando?”, ela perguntou. Eu soluçava. “Venha comigo”, ela disse. “Eu vou te ajudar.”

A zeladora foi puxando minha mão. Era gorda, tinha a pela macia e quente. “Não se preocupe”, dizia. “Conheço a melhor costureira do mundo.”

Chegamos a um prédio baixo de seis andares, no condomínio onde morei quando criança. Eu olhava admirada: “Nada aqui envelheceu. Está tudo limpo e bem cuidado”.

No canto da portaria, uma menina fazia um longo colar com grãos de arroz que pareciam pérolas. “Nunca pensei que arroz brilhasse tanto”, pensei.

De repente a portaria se transformou num porão. Apareceu um homem baixo, muito magro. A zeladora havia desaparecido. O homem segurava um tecido enrolado, parecido com um tapete.

O homem desenrolou o tapete no chão daquele porão. Era um tecido sujo e empoeirado. Eu me ajoelhei, encostei o rosto no tecido e percebi assombrada que havia uma paisagem viva: um jardim com flores, árvores, pássaros e uma cachoeira.

Imediatamente fiquei triste. Pensei: “Não posso cortar... O material é vivo, pode sangrar. Os pássaros e as árvores vão morrer.”

Nesse momento tocou o telefone. Acordei num sobressalto. Ainda atordoada estiquei o braço para atender, e ouvi a voz de uma operadora de telemarketing, oferecendo canais a cabo em alta definição. “Não, obrigada”, respondi.

Fiquei algum tempo no sofá, na fronteira do sono. Liguei a TV e mal pude acreditar: a escritora francesa, na mesma entrevista que me marcava há tanto tempo. Ela havia falecido naquela tarde, e o telejornal reprisava imagens de arquivo.

Incrédula, esperei que a entrevista seguisse até a inesquecível declaração sobre roupas. Mas ela não apareceu. Talvez a entrevista tivesse sido editada. Ou talvez eu tenha visto aquela história em outro lugar, com outra escritora, que eu nunca iria lembrar.

Telefonei para minha mãe acabrunhada e pedi a ela um vestido emprestado. A festa seria no domingo, e lá ia eu novamente, antiquada e desajeitada, com um vestido da minha mãe. Mas ela respondeu surpresa, quase envergonhada: “Filha, eu não te avisei?”. “Não, mãe. O que foi?”. E respondeu: “Sua prima cancelou o casamento”.

(Março, 2010)

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