Mulheres: Profissionais e Personagens na TV Brasileira

* Artigo publicado no catálogo da exposição "Ocupação Laura Cardoso", no ItaúCultural de SP (2017) *

* Esta é a primeira versão do texto, antes da edição final para publicação *

No início dos anos 1940, quando a jovem Helena Silveira, com dificuldades financeiras depois de um divórcio, foi pedir um emprego no jornal Folha da Manhã, esperava ser contratada para escrever crônicas e resenhas de livros. Mas o jornalista Rubens do Amaral, amigo de seu pai, ofereceu a ela a função de cronista social: “Esqueça tudo que aprendeu. Você terá que escrever coisas tolas, fúteis, sem nada de literário. Tem que ir a festas, descrever os chapéus das mulheres.” Helena Silveira, irmã da escritora Dinah Silveira de Queiroz, tinha um livro de contos publicado. Depois de quase três décadas escrevendo colunas sociais, ela se tornaria uma das críticas de TV mais importantes da imprensa brasileira.

Nas cidades brasileiras dos anos 1940, principalmente São Paulo e Rio de Janeiro, a mulher escolarizada era uma figura possível, embora as escolas visassem a uma educação “prática”, ou seja, a preparação da mulher para a “educação dos filhos, a orientação do esposo, o governo do lar”. As mulheres que estudavam faziam cursos de magistério, artes e “artes domésticas”. Algumas estudavam datilografia, serviços de saúde, assistência social, comércio. No trabalho, os “cargos menos importantes e menos exigentes” eram “mais apropriados para o sexo feminino”: vendedoras, secretárias, enfermeiras, professoras. O emprego das mulheres era aceito para complementar a renda das famílias e promover o crescimento do país, dede que não alterasse a feminilidade, nem interferisse no cumprimento dos deveres domésticos. Quando uma jovem se casasse, esperava-se que deixasse de trabalhar.

No mundo das artes (a pintura, a música, as letras), a participação feminina era um pouco mais fácil. As artistas e escritoras podiam trabalhar em casa, com horário flexível e pouca remuneração. Era a continuação natural do costume de moças educadas que tocavam piano. Eram elogiadas pela sensibilidade e elegância. Por causa da “ternura feminina”, eram consideradas naturalmente qualificadas para escrever para outras mulheres e crianças.

A indústria cultural espelhou esse panorama e as transformações que aconteceram nas décadas seguintes. No mercado do entretenimento, desde o início do cinema, da música popular e do rádio, a imagem e a voz feminina são elementos de atração. A chanchada carnavalesca, o gênero cinematográfico brasileiro mais popular dos anos 1930 aos anos 1950, tinha suas estrelas - atrizes, comediantes e cantoras: Dercy Golçalves, Zezé Macedo, Eliana Macedo, Adelaide Chiozzo. Na indústria audiovisual, as mulheres serão atrizes e roteiristas. Às vezes figurinistas e cenógrafas. Mas raramente diretoras, cinegrafistas ou sonoplastas.

O rádio, entretenimento mais acessível e popular, canalizava o sonho de muitas moças. Algumas autoras de radionovelas exemplificam esses sonhos. Dulce Santucci, nascida no interior de Minas Gerais em 1921, gostava de ler e escrevia contos sem publicar. Aos 26 anos, casada, escreveu um romance e o enviou à Rádio São Paulo. Foi convidada para transformar seu romance numa radionovela. Ivani Ribeiro nasceu em 1920 e fez Escola Normal (magistério) em Santos, onde nasceu. Mudou-se para São Paulo pensando em cursar faculdade de Filosofia, e começou a escrever para o rádio. Lúcia Lambertini, nascida em 1926, tinha amigos no TESP, Teatro Escola de São Paulo. Começou a atuar em programas televisivos e peças infantis como Emília, a boneca do Sítio do Pica Paul Amarelo. Tornou-se redatora, produtora e diretora de TV.

A radionovela, e a posteriormente a telenovela, se dedicava ao público feminino. O primeiro sucesso estrondoso da telenovela brasileira – O direito de Nascer, de 1964, adaptada de um original cubado, falava de maternidade e aborto (como ameaça, não como opção). Os títulos das novelas desta época mostram o foco em personagens femininas: As solteiras, A moça que veio de longe, A gata, Mãe, O segredo de Laura, A outra face de Anita, Pecado de Mulher. Mas títulos com nomes femininos poucas vezes significavam mulheres emacipadas. Eram geralmente histórias de amor, melodramas em que a figura feminina está enredada nas armadilhas do coração, em disputas familiares, ciúmes e inveja.

Nesse quadro, destaca-se um título de 1965, escrito por Lúcia Lambertini: “As professorinhas”. Era a história de um grupo de professoras que vão lecionar no interior. Produzido primeiro na TV Cultura, com recursos modestos, foi regravado três anos depois pela TV Record. Era a memória marcante do grande papel profissional da mulher no Brasil: “a professorinha que me ensionou o be-a-bá”, como cantou o sambista Ataulfo Alves em 1956.

Outro sucesso da década de 1960 foi Éramos Seis, adaptação do romance de Maria José Dupré, que contava o cotidiano e as dificuldades familiares de Dona Lola, seu marido e seus filhos. A obra foi adaptada pela primeira vez pela TV Record em 1958. Em 1967 Dona Lola foi interpretada por Cleyde Yáconis na TV Tupi. O romance ainda teve duas outras adaptações, em 1977 e 1994. Publicado pela primeira vez em 1943, a obra narra as transformações de uma família: a dificuldade para comprar a casa, o crescimento dos filhos, a viuvez, a velhice. Maria José Dupré, escritora criativa e bem sucedida, inicialmente assinava seus livros sem mencionar seu nome próprio, como Sra. Leandro Dupré.

Nas mudanças de costumes registrados pelas telenovelas brasileiras, vale ainda registrar algumas personagens mulheres, fortes e independentes, escritas por autores homens, nas obras de Laura César Muniz (Ninguém crê em mim, 1966; Os gigantes, 1979), Mario Lago (Presídio de mulheres, radionovela nos anos 1950 e telenovela em 1967), Jorge Andrade (O grito, 1975; Ninho da serpente, 1982), Gilberto Braga (A corrida do ouro, 1974; Dona Xepa, 1977), além da obra marcante de Walter George Durst, Nina, de 1977, que recupera a figura da professora emancipada, ambientada em São Paulo na década de 1920.

Outro profissional que merece destaque por criar personagens fortes para mulheres é Geraldo Vietri, autor e diretor de longa carreira na TV Tupi e no cinema. A fábrica, de 1971, e Vitória Bonelli, de 1972, mostram mulheres que precisam reconstruir um ambiente familiar e econômico depois da morte de uma figura masculina (o pai, o marido). Laura Cardoso foi atriz em várias obras marcantes de Vietri.

No final da década de 1970, personagens mulheres tornam-se centrais no novo gênero de novelas cômicas, como as Locomotivas (1977), de Cassiano Gabus Mendes, e Pecado rasgado (1978), de Sílvio de Abreu. A possibilidade de não casar torna-se tema da comédia romântica “A barba azul”, sucesso de Ivani Ribeiro, com a personagem Jô Penteado, que ficou noiva sete vezes e não se casou. A obra foi regravada em 1985 na TV Globo como A gata comeu.

Em sua autobiografia, Laura Cardoso destaca suas amigas de muitos anos, atrizes como ela desde o início da TV brasileira: Marly Bueno, Vida Alves, Lia de Aguiar, Lea Camargo e Marcia Real. Nos resumos biográficos de todas, descobrimos marcas do contragimento social imposto às mulheres. Marly Bueno “após o casamento, não abandonou totalmente a vida artística, mantendo-se no ar para apresentar o concurso Miss Brasil de 1965 a 1979”. Vida Alves, que protagonizou o primeiro beijo na TV brasileira em 1951, conta que o diretor e ator Walter Foster “explicou ao seu marido” como a cena seria gravada, com respeito. Lia de Aguiar deixou a carreira para se casar em 1958; voltou 11 anos depois, em papéis menores. Lea Camargo fez a Escola de Arte Dramática e sempre trabalhou como atriz, mas os convites diminuiram depois da falência da TV Tupi. A memória de suas décadas de trabalho está registrada no excelente arquivo do Museu da TV, liderado por Vida Alves.

Até os dias de hoje, as mulheres profissionais da área audiovisual batalham pela representatividade. As atrizes reivindicam papéis melhores e menos estereotipados. As profissionais de áreas técnicas reivindicam mais participação. Se em 2014, entre 18 diretores de núcleo da TV Globo (cargos mais altos de direção artística na teledramaturgia), somente 2 eram mulheres, significa que ainda falta muito para a igualdade.



Referências:

“Modernizando a desigualdade: reestruturação da ideologia de gênero no Brasil, 1914-1940”, Susan K. Besse, Edusp, 1999.

“Paisagem e memória”, Helena Silveira, Paz e Terra, 1983.

Site Teledramaturgia, de Nilson Xavier – www.teledramaturgia.com.br

Site Pró-TV – Associação de Profissionais de Televisão – www.museudatv.com.br

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