O tigre e o ganso
Algumas coisas acontecem quando você está com raiva de um homem. Quando ele te trai e você está com muita raiva, e poderia até parar pra pensar que não gosta dele tanto assim, mas nem isso consegue fazer. Por exemplo um dia você sonha que ele está mexendo numa caixa cheia de comprimidos estragados e uma gorda telefona e começa a te xingar com fúria; e depois todos estão no cinema, você vê um ganso com cabeça de tigre na parede, segue um garoto loiro que você conhecia no colegial e descobre que todos numa certa festa são zumbis: e você acorda e acha tudo isso de grande importância.
É madrugada, três ou três e meia, ele está ao seu lado dormindo de cuecas e o ventilador está ligado. Você o chama, ele responde com um resmungo. Você conta resumidamente o sonho. Ele resmunga outra vez e volta a dormir. Você levanta e vai até a cozinha (antes disso passa pelo banheiro e olha seu rosto no espelho pois não lembra como ele é). Bebendo água você sente vontade de tomar café. Enche a chaleira, liga o fogão, a chama a hipnotiza e você fica um minuto sem se mexer.
Você derrama água fervendo na xícara, uma colher de sopa cheia de Nescafé. Faz calor (você ainda não esqueceu o sonho). Você procura papel e caneta entre a bagunça de livros jogados no chão: nisso ele acorda. Aparece na porta e pergunta o que você está fazendo. Você diz que ficou impressionada com o sonho e quer escrevê-lo. Ele lembra vagamente de você ter dito algo enquanto ele dormia, você repete as partes mais importantes, ele ouve fazendo hã-hã e querendo ir ao banheiro.
Quando chega na parte do tigre-ganso, você explica com mais detalhes: no pescoço, onde os pêlos da cabeça de tigre se encontravam com as penas do corpo de ganso, não havia emendas e com pavor, no sonho, você percebeu que aquele bicho era biologicamente feito daquele jeito. Você diz que nunca sentiu medo maior na vida, o de descobrir que aquele pescoço de penas se unia sem costura aos pêlos.
Ele diz que você NÃO DEVIA escrever o sonho. Você diz que vai escrever pois não quer esquecer. Ele diz que NÃO VAI FAZER BEM. Vocês começam a discutir e em cinco minutos estão aos berros (ao mesmo tempo você se preocupa porque o barulho obviamente está acordando as meninas do segundo andar), os berros se tornam violentos como foram uma outra vez, embora você nunca se imaginou capaz, nunca nem imaginou um motivo que pudesse levá-la a tanto, o único impulso igual que sentiu na vida foi o de esmurrar seu irmão quando aos dez anos de idade ele roubou seu diário e se pôs a ler em voz alta sobre o beliche, enquanto você tentava escapar dos chutes dele, tentava subir, e a cada vez que não conseguia seus dentes crispavam e uma força que você não tinha invadia seus braços.
Uma semana depois desse sonho você põe um vestido preto e entra num restaurante com luzes fracas e amareladas. Olha o cardápio e não tem dinheiro pra jantar, então senta no balcão e pede uma bebida. Um sujeito ao seu lado, careca, certo sebo cobrindo a cabeça por igual, diz algo minimamente engraçado. Você ri, um pouco. Em duas ou três frases ele se oferece pra pagar sua bebida; você resolve pedir algo bem caro e percebe que não pagar é tudo o que você queria na vida.
Uma semana depois desse sonho você põe um vestido preto e entra num restaurante com luzes fracas e amareladas. Olha o cardápio e não tem dinheiro pra jantar, então senta no balcão e pede uma bebida. Um sujeito ao seu lado, careca, certo sebo cobrindo a cabeça por igual, diz algo minimamente engraçado. Você ri, um pouco. Em duas ou três frases ele se oferece pra pagar sua bebida; você resolve pedir algo bem caro e percebe que não pagar é tudo o que você queria na vida.
Você bebe. Ele diz que está num hotel ali perto. Vocês vão andando pro hotel e ao passar pela recepção você acha que é evidente a todos os porteiros e ao ascensorista que você está indo trepar com aquele careca seboso. Meio bêbada.
No quarto você tira a roupa, o careca arregala os olhos, ele tira a calça e a cueca e por debaixo de camisa e barriga você vê um pinto enorme. Quando você pega, está meio mole. Você pensa "não acredito que esse careca é brocha".
Com raiva resolve chupá-lo pra ver até onde ele vai, e depois de certo esforço - ele diz, ofegante, que você chupa muito bem - você o deixa duro. Ele mete, duas vezes, sem camisinha, então fica de joelhos e goza na sua barriga.
No dia seguinte você vê uma velha magra passar por uma fresta de cerca de arame num prédio do Governo do Estado, e subitamente imagina que a velha é o que você será, aos oitenta anos.
(capítulo do livro "Calcinha no varal", Cia. das Letras, 2005)
Comentários
Postar um comentário